Gustavo Ramos
A Escrita do
Silêncio, livro
do psicanalista Marcus André Vieira, bem poderia ser a retomada em chave
dúplice da obra Estereoscopio, do
coletivo IMaDuBA, do Instituto Marcel Duchamp, em Buenos Aires, de 2005. Nela, nós
vemos a junção do mar e do céu a partir de um experimento ótico, o Stéréoscopie à la main. O instrumento
destinado à realização de exames a partir da análise de fotografias ou imagens
se dá a partir do alargamento do que se está a ver, apresentando em relevo as
imagens planas, ou seja, na obra de Duchamp, vemos desenhada manualmente uma
pirâmide sobre a fotografia do Rio da Prata, sob um efeito de duplicação, na
tentativa de suspender e, ao mesmo tempo, dar ênfase a essas duas instâncias -
o Mar e o Cel, Marcel -, um pouco como se vê na capa do livro de Marcus André,
feita pela montagem da pintura O velho
lago, de Bashô. Se, em cima, lemos o título "A escrita do
silêncio" sobre um fundo branco, desaparecido, embaixo, em uma espécie de
subtítulo, colocado entre parênteses, "(voz e letra em uma análise)",
já nos aponta esse contato disperso na página entre essas duas instâncias,
tanto o azul e o branco, quanto a escrita do silêncio e os trechos do seu
testemunho de passe. É uma espécie de mordidavida
revisitada a partir do referencial da voz que divide duas instâncias, dando
possibilidade de surgir uma terceira, seria a terceira margem do rio? Marcus
André traz à tona tal trecho de sua análise: "Neste momento de dor,
ouve-se uma barulheira do outro lado da rua, mais adiante, na direção do
movimento dos carros. Ali, enxergo algumas pessoas em volta de alguém, mas não
consigo ver grande coisa. Só ouço. Seja quem for ou o que for, está agitado e
fazendo confusão e algazarra. Seria um bêbado ou mendigo? Não sei, mas sou
tomado pela certeza de que é ali, do outro lado, que está o que importa."
(p. 75) Não se consegue identificar nem delinear quem está do outro lado,
apenas escutar o som que isso provoca em Marcus André. Ao retomar esse sonho em
análise, ele afirma haver do outro lado, no meio desses sons desconexos, um
mordido, o que não significa alguém literalmente mordido, “mas uma excitação
sem corpo definido, sem imagem estável,” (p. 80) assim como os elementos
colocados para análise no estereoscópio, pois se coloca o material para tentar
discernir o que não se consegue ver, alargar - a terceira margem. Há, no
entanto, um porém: em uma análise tenta-se enxergar para além, pois sempre
haverá a marca da letra, do aspecto fora do sentido e que é somente a marca do
encontro com o Outro, uma assinatura. Sob esse aspecto, a terceira margem só
pode ser construída - ou reconstruída - com o que desse encontro, dessa marca,
pode ser contado, mesmo sem o acesso ao estereoscópio. "Uma voz sempre
remete a um corpo, mesmo que como seu ponto de silêncio ou dejeto.", diz o
psicanalista nos trechos em preto do livro, haja vista que as partes de seu
passe estão em azul, e os comentários em preto, mas o que se percebe durante a
leitura do livro é que não há uma delimitação exata entre uma coisa e outra,
assim como não há na própria capa do livro com Bashô, muito menos na obra de
Duchamp. Entre o mar e o céu mordidos da vida de Marcus André Vieira há, entre
um e outro, uma escrita possível, a escrita do silêncio escutado no exato
momento no qual um outro lado aparece e é lá onde se localiza o que importa.
Sob esse prisma, "o gozo da vida só existe 'mordido', só tem lugar a
partir da incidência da linguagem sobre o vivo do corpo, na certeza de que
nossas vidas só seguem nos caminhos recortados pela vida que não pôde, neles,
caber." (p. 82) Esses caminhos são justamente os que aparecem no Esteroscópio à mão, não cabem, desaparecem, e só na remontagem que podem surgir.
Um belo exemplo disso é o livro A escrita
do silêncio.
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