DO ESTEREOSCÓPIO MORDIDO


Gustavo Ramos
Psicanalista, Doutorando em Literatura UFSC
gustavofloripa16@gmail.com



A Escrita do Silêncio, livro do psicanalista Marcus André Vieira, bem poderia ser a retomada em chave dúplice da obra Estereoscopio, do coletivo IMaDuBA, do Instituto Marcel Duchamp, em Buenos Aires, de 2005. Nela, nós vemos a junção do mar e do céu a partir de um experimento ótico, o Stéréoscopie à la main. O instrumento destinado à realização de exames a partir da análise de fotografias ou imagens se dá a partir do alargamento do que se está a ver, apresentando em relevo as imagens planas, ou seja, na obra de Duchamp, vemos desenhada manualmente uma pirâmide sobre a fotografia do Rio da Prata, sob um efeito de duplicação, na tentativa de suspender e, ao mesmo tempo, dar ênfase a essas duas instâncias - o Mar e o Cel, Marcel -, um pouco como se vê na capa do livro de Marcus André, feita pela montagem da pintura O velho lago, de Bashô. Se, em cima, lemos o título "A escrita do silêncio" sobre um fundo branco, desaparecido, embaixo, em uma espécie de subtítulo, colocado entre parênteses, "(voz e letra em uma análise)", já nos aponta esse contato disperso na página entre essas duas instâncias, tanto o azul e o branco, quanto a escrita do silêncio e os trechos do seu testemunho de passe. É uma espécie de mordidavida revisitada a partir do referencial da voz que divide duas instâncias, dando possibilidade de surgir uma terceira, seria a terceira margem do rio? Marcus André traz à tona tal trecho de sua análise: "Neste momento de dor, ouve-se uma barulheira do outro lado da rua, mais adiante, na direção do movimento dos carros. Ali, enxergo algumas pessoas em volta de alguém, mas não consigo ver grande coisa. Só ouço. Seja quem for ou o que for, está agitado e fazendo confusão e algazarra. Seria um bêbado ou mendigo? Não sei, mas sou tomado pela certeza de que é ali, do outro lado, que está o que importa." (p. 75) Não se consegue identificar nem delinear quem está do outro lado, apenas escutar o som que isso provoca em Marcus André. Ao retomar esse sonho em análise, ele afirma haver do outro lado, no meio desses sons desconexos, um mordido, o que não significa alguém literalmente mordido, “mas uma excitação sem corpo definido, sem imagem estável,” (p. 80) assim como os elementos colocados para análise no estereoscópio, pois se coloca o material para tentar discernir o que não se consegue ver, alargar - a terceira margem. Há, no entanto, um porém: em uma análise tenta-se enxergar para além, pois sempre haverá a marca da letra, do aspecto fora do sentido e que é somente a marca do encontro com o Outro, uma assinatura. Sob esse aspecto, a terceira margem só pode ser construída - ou reconstruída - com o que desse encontro, dessa marca, pode ser contado, mesmo sem o acesso ao estereoscópio. "Uma voz sempre remete a um corpo, mesmo que como seu ponto de silêncio ou dejeto.", diz o psicanalista nos trechos em preto do livro, haja vista que as partes de seu passe estão em azul, e os comentários em preto, mas o que se percebe durante a leitura do livro é que não há uma delimitação exata entre uma coisa e outra, assim como não há na própria capa do livro com Bashô, muito menos na obra de Duchamp. Entre o mar e o céu mordidos da vida de Marcus André Vieira há, entre um e outro, uma escrita possível, a escrita do silêncio escutado no exato momento no qual um outro lado aparece e é lá onde se localiza o que importa. Sob esse prisma, "o gozo da vida só existe 'mordido', só tem lugar a partir da incidência da linguagem sobre o vivo do corpo, na certeza de que nossas vidas só seguem nos caminhos recortados pela vida que não pôde, neles, caber." (p. 82) Esses caminhos são justamente os que aparecem no Esteroscópio à mão, não cabem, desaparecem, e só na remontagem que podem surgir. Um belo exemplo disso é o livro A escrita do silêncio.

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